quinta-feira, 18 de janeiro de 2007

Razões de um NÃO responsável.

Já não suporto, não aguento, não tenho capacidade intelectual nem emocional para falar mais do Aborto. E não voltarei a fazê-lo. Pela última vez escreverei agora as razões pelas quais me parece que, jurídica e socialmente, só o voto no NÃO é legítimo, procurando ainda desmontar os argumentos do Sim.

1. A vida humana é reconhecida deste a concepção pelo direito.
A personalidade jurídica começa no momento do nascimento completo e com vida. Mas a personalidade jurídica não se confunde com a personalidade humana nem com a tutela que o direito faz à personalidade humana. Com efeito, um nascituro já concebido goza de direitos de natureza pessoal e patrimonial: pode ter já património, pois é possível deixar em testamento bens a um nascituro; goza de direitos de personalidade, como o direito à honra, à dignidade, à imagem, etc. Se forem violados, o nascituro tem um direito próprio a ser indemnizado.
Ora, se assim é, não é juridicamente coerente conferir todos os direitos de personalidade ao nascituro negando-lhe depois o direito mais fundamental (o direito à vida), entendendo que é a mãe quem livremente optará por conferir-lho ou não!
A liberalização do aborto implicaria, pois, uma total alteração do sistema jurídico, na medida em que não podemos entender o nascituro como sujeito de direitos e obrigações enquanto ser autónomo e depois vir admitir que é a mãe quem decide sobre a vida do feto, como se não existisse vida autónoma. A admitir o aborto livre, há que excluir todos os outros direitos de índole pessoal e patrimonial que o sistema jurídico já consagra à vida intra-uterina.


2. Se admitimos que o feto é vida humana, não podemos admitir o aborto.
Se o feto é considerado sujeito autónomo de direitos e deveres (coisa que ninguém discute), não pode haver razão alguma que justifique o livre acto abortivo. A liberdade da mãe termina no ponto em que começa a liberdade de outrem. Ora, se admitimos que o feto tem direitos próprios, não podemos deixar a um terceiro (a mãe) que opte livremente quanto à sua vida. Porque se assim for, que diferença há entre um feto com 10 semanas e um com 20? Já é vida às 20 e não é às 10? Porquê? Onde está a diferença? É que às 8 semanas é possível determinar o sexo do bebé; às 10 semanas há um coração a bater...
Sermos coerentes é admitir, então, o aborto enquanto o feto estiver dentro do útero.
E mais uma vez pergunto: qual é a diferença entre um feto dentro do útero e uma criança recém-nascida? A dependência da mãe verifica-se nos dois casos. E, então, porque não admitir que a mãe possa matar o recém-nascido quando não tenha condições para lhe dar uma vida decente e íntegra?
A coerência admiti-lo-ia!
Nenhum dos actos é possível porque a mãe não tem legitimidade para decidir sobre a vida de outrem. Seja boa ou má, a vida não é sua, não está na livre disponibilidade da mulher (já chegarei às causas admitidas de aborto...)


3. Não se trata de uma despenalização mas de uma liberalização.
A despenalização consiste na descriminalização de uma conduta que continua a ser proibida. Exemplo: despenalização do consumo de drogas leves. Deixou de ser crime, continua a ser proibido, punido por uma coima, ao nível do direito administrativo.
Aqui discute-se uma liberalização: está em causa saber se o aborto pode ser permitido, livre, até às 10 semanas. Mais, se o Estado deve providenciar o aborto livre até esse momento.
Questão: porque é que a pergunta é "despenalização" e não "liberalização" quando é disto que se trata?


4. Trata-se de "Aborto" e não de "Interrupção Voluntária da Gravidez".
O que está em causa neste referendo é a alteração de um artigo do Código Penal onde se prevê a punição do crime de aborto. É isso que se discute.
Questão: se está em discussão uma norma sobre "Aborto", porque é que a pergunta é sobre "IVG"?


5. Admitir as causas permitidas de aborto e rejeitar o aborto livre não é ser incoerente.
O Código Penal não é uma compilação de normas prevendo crimes específicos. Essa é uma parte do Código Penal, a parte especial. Além da parte especial existe uma parte geral, com disposições a ser aplicadas em todos os crimes.
Ora, um dos princípios da parte geral é o princípio da culpa como limite inultrapassável da punição, bem como o da culpa enquanto pressuposto essencial da punição. Se não houver culpa, não pode haver pena; se a culpa for diminuta, a pena será diminuta.
É por isso que quem roubar para comer ou, melhor, quem roubar para dar de comer aos filhos, não tem qualquer punição! Actuou num "estado de necessidade desculpante", isto é, entende-se que apesar de ter praticado um facto tipificado como crime, não é censurável, reprovável, a sua conduta. Razão pela qual não há pena.
Da mesma forma, há causas de exclusão da ilicitude: se alguém entrar em minha casa para me matar e eu, para me defender, matar o atacante, não serei punido porque agi em legitima defesa. Isto é, entende-se que a minha conduta nem sequer é ilícita, nem sequer é anti-jurídica, pois agi com o intuito de proteger um bem jurídico de valor igual ou superior ao que violei (violei o bem "vida do asaltante" para proteger um de igual valor "minha vida").
Assim, as três causas permitidas de aborto NÃO TINHAM de estar expressamente previstas na parte especial, no concreto artigo referido ao crime do aborto. Isso resultaria da parte geral.
Ainda assim, o legislador entendeu dever explicitá-las.
1- Perigo de Vida da Mulher: É claramente uma causa de exclusão da ILICITUDE. Admite-se que o aborto é lícito porque se pratica com o intuito de proteger outro bem jurídico de valor igual ou superior. Viola-se o bem jurídico "vida do feto" para proteger o bem jurídico "vida da mãe".
2- Violação: Há quem entenda que também aqui se trata de uma causa de exclusão da ilicitude. Considera-se lícito o aborto (violar o bem jurídico "vida do feto") para proteger outro bem jurídico que foi atacado ("auto-determinação sexual da mulher"), de valor igual ou superior.
Por minha parte, parece-me que se trata de uma exclusão da culpa. Isto é, a mulher pratica o facto tipificado como crime mas não é punida porque não há reprovabilidade na sua conduta, entende-se compreensível que a mulher o faça.
3- Mal formação do feto: Exclusão da culpa: a mulher pratica o facto tipificado como crime mas não é punida porque não há reprovabilidade na sua conduta, entende-se compreensível que a mulher o faça, não a sujeitando a uma pena que exprime censurabilidade social.

Pois que incoerência existe em admitir a NÃO PUNIÇÃO da mulher nestes casos e defender a protecção penal quanto ao aborto livre? Nenhuma! É coerente o nosso pensamento.
E não é só o nosso: mesmo a lei francesa, que é apontada pelos defensores do SIM como lei modelo, admite o aborto em caso de "angústia da mulher". Acredito que na prática seja exactamente a mesma coisa que um aborto livre, mas do ponto de vista jurídico há uma grande diferença: é que, em França, entende-se que o aborto é crime, embora em caso de angústia da mulher se exclua a culpa. Não há punição porque, em caso de angústia se entende que não há reprovabilidade da sua conduta.


6- Não é incoerente querer a lei em vigor e não querer mulheres na prisão.
O direito penal não serve para castigar, não serve para aplicar castigos a quem se porta mal. Esse papel caberá a muitas ordens mas não ao Estado. O direito penal serve para prevenir a violação de bens jurídicos. A melhor norma de direito penal será aquela que nunca foi aplicada, pois é sinal que conseguiu prevenir a prática do crime.
Quando não conseguiu prevenir a prática do crime (prevenção geral negativa), a norma penal impõe uma punição, mas não para castigar ou para infligir um mal (finalidade ético-retributiva).
O direito penal aplica uma punição com finalidades preventivas: reintegrar a norma violada, isto é, dar um sinal à sociedade que a norma violada continua em vigor, mas PRINCIPALMENTE ressocializar o agente do crime, isto é, dar-lhe as condições para que possa prosseguir a sua vida sem cometer mais crimes (prevenção especial positiva). Ou seja, a pena a aplicar em cada caso vai ter como função ressocializar o agente, pelo que só será necessária quando o agente tenha necessidades de ressocialização.
Por outro lado, a pena a aplicar terá como limite a culpa da mulher: ora, é facilmente conjecturável que, muitas vezes, não haja um juízo de censurabilidade da mulher que abortou, se o fez em circunstâncias que tornam não reprovável a sua conduta.
Ora, assim sendo, é perfeitamente coerente querer a norma em vigor e intimamente desejar que ela não implique a prisão de mulheres: só implicará se a atitude da mulher for culposa, censurável, e se esta revelar necessidades de ressocialização.
Isso é muito diferente de aceitar um aborto livre, a pedido, sem qualquer razão.


7- A protecção penal do aborto é necessária:
O direito penal só deve intervir quando seja estritamente necessário, isto é, quando nenhum outro ramo do direito conseguir proteger eficazmente o bem jurídico que tenha dignidade penal. Se ninguém discute que o bem jurídico (vida) tem dignidade penal, é já discutível se deve o direito penal intervir, por razões de eficácia. Isto é, se for encontrada uma qualquer outra forma de prevenir o aborto, está deslegitimada a intervenção do direito penal.
Ora, pergunto eu: além do direito penal, que outra forma pode eficazmente prevenir o aborto? Coimas de 30 a 3000 euros? Não me parece... Por isso digo: arranjem-me por favor uma forma de prevenção do aborto.


8- Os circos mediáticos vão continuar mesmo depois do SIM ganhar.
Aqueles lamentáveis circos mediáticos à volta dos tribunais onde decorriam julgamentos pelo crime de aborto e que humilhavam profundamente as mulheres visadas vão continuar. É que todos esses julgamentos eram por abortos cometidos depois das 1o semanas, factos que vão continuar a ser crime.
Que passo vem a seguir?


9- A lei a votar desrespeita profundamente a vida humana.
Antes de me insultarem, queria só alertar que me vou referir ao que a lei permitirá, não o que vai acontecer.
A lei que vai ser aprovada depois do referendo vai permitir que uma mulher vá ao Hospital e diga "Engravidei agora, mas já tenho férias marcadas para Agosto e não me dá jeito nenhum estar de 8 meses nessa altura. Faça-se o aborto". Ou que diga: "estou grávida de uma menina. Como queria um rapaz, vou abortar".
Não estou, obviamente, a dizer que isto vai acontecer, pois espero sinceramente que não. Só estou a dizer que a lei o permite, pois liberaliza qualquer aborto a pedido da mulher. E o facto de a lei o permitir é, para mim, profundamente chocante.


10- O facto de haver aborto clandestino não é argumento.
Aborto clandestino, claro que há. Outros crimes praticados clandestinamente, claro que há - roubos, furtos, homicídios, violações.
O argumento da liberalização do aborto porque ele existe de qualquer forma pode ser aplicado a qualquer crime. Como existem homicídios de qualquer forma, vamos liberalizar. Como existem furtos de qualquer forma, vamos liberalizar.
Não pode ser esse o critério. O critério só pode ser um: é ou não tutelável o bem jurídico "vida intra-uterina".


11- O aborto clandestino não vai acabar.
O aborto clandestino manter-se-á, pois o grande atractivo daquele é precisamente o facto de ser clandestino. Permitir o aborto livre não será motivo para que muitas mulheres continuem a fazer abortos secretamente, não querendo identificar-se num estabelecimento público ou privado de saúde.


Estas são sumariamente (se me lembrar de mais alguma, aditarei) as razões do meu NÃO responsável que me parece a única resposta coerente e juridicamente legítima.
E foi a última vez que falei disto.

1 comentário:

eradumvelhinho disse...

Ora nem mais.Isto merecia ser publicado num grande jornal nacional.
E ainda tem a questão do ponto de vista dos médicos.Eles são obrigados a fazer? Não podem invocar razões de consciência?
E isto tudo, num país onde se espera muito tempo por consultas,cirurgias,etc,etc.Tirar a vida passa a prioridade.Salvar uma? Fica para amanhã.